bem vinda de novo

eu não sei qual foi a palavra mágica, mas de repente, como se por impulso, eu tive de sair daquele carro. minha energia não fazia mais sentido ali, não com aquelas pessoas, não com aqueles humores.
eu estava a dois bairros de casa, tinha dinheiro no bolso, um celular com bateria, um maço de cigarro praticamente completo dentro da bolsa e isqueiro. tudo conspirava para eu ligar para alguém, nem que este número fosse o do táxi.
quando me dei conta, eu não tinha sequer parado para atravessar a rua, minhas pernas caminhavam sozinhas. desliguei o celular, joguei o maço de cigarros fora e guardei o isqueiro junto a meu dinheiro.
parei em algumas esquinas, mas sempre acabava optando pelo caminho mais longo. as calçadas pareciam interditadas, de tão vazias. uma e meia da manhã, a cidade não chegou nem perto de dormir. me senti em alguma equação galático-esotérica, os sons vinham dos carros ao longe.
fui atravessar uma avenida e notei dois rapazes, na outra faixa de pedestres, também esperando para atravessar. não sei dizer como eram, nem de onde vieram e nem como se portavam, mas consegui notar que eles me observavam.
olhei de volta, eles viraram a cara.
atravessei a rua, e eles estavam me olhando de novo.
olhei de volta, eles viraram a cara.
esse jogo permaneceu quarteirões, até nossos caminhos se bifurcarem.
dei uma última olhada, de longe, e eles estavam me olhando.
foi um momento estranho. não pareciam querer me roubar, estuprar ou qualquer coisa do gênero. teriam o feito em três segundos naquele vazio.
continuei meu caminho.
é diferente caminhar a noite, a distância de dois bairros aparentemente se dividiu. os carros não ocupam nem tempo e nem espaço. mas como toda regra tem sua excessão:
"ei, moça... ei, ei", eles repetiam sem parar até pararem do meu lado.
"acho que é um traveco"
"iiiiiih, é homem mesmo"
todas as luzes se apagaram e eu me vi torcendo para ser um traveco (pelo menos a surpresa ficaria pra eles).
continuei caminhando tranquilamente, novamente, pelo caminho mais longo.
e se você chegou neste ponto da história, tenho que evidenciar que o caminho mais longo era também o mais retilínio, não que isso mude alguma coisa, mas do meu ponto de vista mudou bastante.
apesar de tudo, meu corpo estava tão leve, mais tão leve, que eu mal sentia minhas pernas no chão. eu já não estava mais respirando, cada vez que inspirava parecia que o ar transpassava meu corpo. eu parti para um plano psiquico, que não estava nada retilínio, mas eu já tinha virado ar, então não tinha problema.
e neste ponto eu tenho que evidenciar outro fato: foi meu primeiro dia completamente sóbria em
semanas - bem, com excessão daquela única lata de cerveja aguada, que eu nem considerei.
passei por um caminhão, numa rua com o poste quebrado, em frente a um banco, uma igreja evangélica e uma igreja ortodoxa judáica, cuja até a entrada havia uma espécie de boulevard, com peões ajudantes sentados pelos cantos. alguns estavam carregando algumas coisas, enquanto parte descansava.
eu não ouvi nem um boa noite. nem um pio. nem um som deles trabalhando.
por um segundo na minha cabeça me vi em um mundo onde as pessoas não emitissem sons, mas quando concluí a idealização já tinha alcançado um caminhão de lixo, que pelo contrário, era muito barulhento.
porém, nele noticiei mais um fato curioso: três lixeiros, todos segurando no caminhão -que dava ré- com a mão esquerda, apoiados com a perna esquerda, deixando os dois membros do outro extremo completamente livres, balançando juntos como um nado sincronizado.
eu esbocei um aceno, mas desisti, já estava me sentindo a parte demais para liberar a minha esquizofrenia na rua.
então continuei, sem achar nada daquilo absurdo. cheguei em casa, acordei o porteiro, subi.
e aqui nós estamos de novo, no caminho do bem.

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