primeiras considerações sobre o arrebatar

Se eu partir do pressuposto então de que eu, ser pensante, vejo e percebo o mundo de forma tal que outros não percebem, e que até possa ter alguém que veja da mesma forma que eu, mas considerando o próprio ato de ver algo único, que vem de dentro pra fora, o ver além do olhar e enxergar; ver pra dentro, numa lógica abstrata e fragmentada, desatrelando o ver de qualquer signo e imagem pré-datado, transformar o ato de ver em algo mais físico, o ver como algo que constrói e destrói uma imagem pura de significação, espaço e tempo.
Posso passar, então, uma hora a olhar para um corrimão de uma escada, piscar, e não saber qual a sua cor, seu material e seu formato. 
UMA HORA 
olhar corrimão de escada piscar
Essa imagem que se cria entre a imagem dada e meus olhos, uma película transparente de reações e sinapses que ganham movimento através das vibrações do som, este, portanto, capaz de fazer imergir e submergir, para então subverter a sensação do espaço/tempo, o som como o vento que sopra, a imagem como a brisa que sinto mesmo sem ver.
o ver de dentro pra fora capaz de anular o peso da gravidade e toda a cinética.
o ato de ver como arrebatador, e por arrebatador entenda-se, ir subitamente a um espaço mental desconhecido e voltar, sem memória lógica ou óbvia do que possa ter acontecido, podendo ou não ser ligado a realidade, mas provedor de sensações incapazes de definição.
Passo uma hora em um espaço indeterminável, impassível de qualquer materialização ou descrição proveniente de uma palavra; tempo este que poderia muito bem ser dez segundos - o ponto é que o tempo é determinado pelo entorno, portanto, relativo, e no que chamo de arrebatamento a noção de tempo pode ser alongada ou diminuída, de acordo com a experiência e capacidade de abstração do eu -;

âncoras

ali, numa escuridão infinita,
seria quase uma cegueira se não fosse pelo horizonte tão nítido.
eles seguram a minha mão, mas não sei quem são, aonde pisam.
a cada passo o horizonte caminha junto.
dá pra chegar? existe um lugar?
cada braço me leva pra um lado - tudo ao mesmo tempo,
o corpo não se desmembra.
minha vontade de ir pra cima ancorada em diferentes portos, paradas.
gravidade, você me coloca pra baixo.
o mar de vozes aflitas, confusas, tempestuosas, não sei se navego ou se me afogo.
inércia.
a mente vai aonde o corpo leva.
a densidade da água me eleva.
é tudo tão escuro que não existe lembrança, saudade, imagem.
fica só uma vontade latente, pulsando, se desmembrando ferozmente.
pediram pra ela ir embora e ela foi sem deixar a calmaria.
mas o agir sem a vontade voa e se afoga.
são portos perdidos no breu de um nada,
os barcos navegam sem vento, sem água.
ainda o horizonte tão nítido e se distanciando...
acho que estou cega aqui, imaginando uma linha reta qualquer.

gelada

eu vou
morrer
afogada
numa
película
d'água

eu vou 
morrer 
afogada
numa
película 
d'água

não sei
nadar
não ser
nada
não ser
nadar
não sei
nada

tá pego

ô nego
o aconchego gostoso no peito
que chega perto trazendo o seu cheiro
que vontade de te encontrar...

ô nego
mas que gostoso esse silêncio pego
canta baixinho pra espantar os nervos
e a gritaria nesse seu olhar...


num mar cheio de gente...
o barulho atormenta a mente.
colando o corpo a gente se entende,
esse calor que quase faz voar...

deixa estar

num dia de descanso escolho um canto, canto outro.
há sempre uma dúvida primordial ao conhecer pessoas:
talvez seja alguém; talvez seja um qualquer; talvez se...
no entanto, essas três opções implicam uma condição no ser.
e enquanto ser, eu prefiro só estar.